Reminiscências
Sentada numa cadeira de balanço em seu quarto ela pensava enquanto
ouvia a algazarra dos seus netos e bisnetos.
Pensava em sua vida e nos quatorze filhos que criara e agora estavam
espalhados pelo mundo, tão distantes dela no tempo e no espaço.
- Meu Deus, eu os carreguei durante nove
meses dentro de mim, durante nove meses fizeram parte de mim. É assustador
pensar que estamos gerando e alimentando um novo ser que pode ser um anjo, um
monstro ou simplesmente um ser humano. É tão bom quando nasce de nós alguém a
quem podemos chamar gente, a quem podemos chamar humano.
É...Eu os carreguei durante nove meses em minhas entranhas e
depois de nascerem continuaram me sugando, continuaram se alimentando de mim
durante muito tempo. Eles eram tão frágeis, dependiam tanto do meu carinho, da
minha proteção.
Era
fascinante observar como corriam pra mim quando se assustavam, quando tinham
medo. Era tão bom vê-los correrem para os meus braços, se aninharem no meu colo
e ficarem felizes e tranquilos. Sentiam-se protegidos contra tudo e contra
todos. Dependiam de mim e eram meus. Depois foram crescendo e já não dependiam
tanto, já não corriam pra mim com tanta confiança, com tanta segurança e se
alguma coisa os aborrecia ou se surgia um desentendimento entre eles, brigavam,
exigiam, cobravam e queriam sempre mais de mim. E foram crescendo, já não me
buscavam, já não me amavam, não tinham tempo pra me fazerem um carinho, só pra
me cobrarem, eu via com horror que se tornavam egoístas, gananciosos e áridos.
Brigavam sempre, tinham um ciúme doentio uns dos outros e só nos raros
intervalos entre as brigas surgia uma conversa mais ou menos fraterna, E
quantas vezes os mais compreensivos, os mais amorosos foram negligenciados porque
amavam simplesmente, sem pedir nada em troca, sem impor condições.
E aquelas crianças
que nasceram da mesma mãe, que brincaram juntas, que brigavam mas permaneciam
juntas, unidas; aquelas crianças que choraram juntas, riram juntas, inventaram
brincadeiras juntas, que pareciam pequenas peças de um quebra cabeça
maravilhoso chamado família se desintegravam, já não se encaixavam mais. Viviam
na mesma casa por costume, por hábito, mas não havia amizade, amor, unindo
aquelas criaturas. E então casaram e assim desmoronou de vez. Já não me amavam, já me odiavam. E aquelas crianças que foram minhas, que se alimentaram
todas de mim, que me sugaram com tanta avidez, essas crianças que brincaram e
riram juntas se transformaram em inimigas. Como pode meu Deus? Será que gerei
monstros em vez de gente?!! Será?! E como gostam de falar mal uns dos outros;
basta verem uma pessoa conhecida ou não pra desfiarem um rosário de acusações
contra seus irmãos. Por que são assim? Por quê? Será que todas as famílias são
assim? Quase todas? Muitas? Poucas?
Pouquíssimas? Ou será que a minha é uma exceção? Não sei. Mas é triste.
Hoje sou considerada
um trambolho que só atrapalha.
Meus filhos, netos e bisnetos
não me amam. Alguns me odeiam, não vêem a hora de se verem livres de mim,
outros me dão um pouco de atenção por obrigação. A gente sente quando as
atitudes são forçadas.
Parece impossível que
criaturas que sugaram o mesmo sangue, a mesma carne, músculos, nervos, a mesma
seiva e o mesmo amor possam se odiarem tanto, se detestarem tanto, se desejarem
tanto mal. Parece uma maldição.
Mas, apesar de tudo,
há algo bom. Entre tantos filhos e filhas, netos e netas, bisnetos e bisnetas
que me detestam, odeiam ou ignoram, há alguns, pouquíssimos é verdade, mas há,
que me amam de verdade sem nada pedirem, exigirem ou cobrarem, sem imporem
condições.
Me amam tanto que sinto quase obrigação de ser
forte pra fazê-los felizes. É por eles que sinto que minha vida tem sentido,
que sinto que não fracassei. Alguma coisa boa eu fiz.
Batem à porta.
- Entra.
- Oi Vó. Eu quero que a senhora me fale do seu tempo
de moça. Pode Vó?
- Claro querida, eu adoro
conversar contigo.
A menina puxa a cadeira pra perto da vó, deita a
cabeça em seu colo e se prepara para ouvir as histórias antigas que a Vó conta,
enquanto acaricia sua cabeça.