sábado, 24 de junho de 2023

 

Reminiscências

 

                                Sentada numa cadeira de balanço em seu quarto ela pensava enquanto ouvia a algazarra dos seus netos e bisnetos.

                       Pensava em sua vida e nos quatorze filhos que criara e agora estavam espalhados pelo mundo, tão distantes dela no tempo e no espaço.

                      - Meu Deus, eu os carreguei durante nove meses dentro de mim, durante nove meses fizeram parte de mim. É assustador pensar que estamos gerando e alimentando um novo ser que pode ser um anjo, um monstro ou simplesmente um ser humano. É tão bom quando nasce de nós alguém a quem podemos chamar gente, a quem podemos chamar humano. 

                 É...Eu os carreguei durante nove meses em minhas entranhas e depois de nascerem continuaram me sugando, continuaram se alimentando de mim durante muito tempo. Eles eram tão frágeis, dependiam tanto do meu carinho, da minha proteção.

                    Era fascinante observar como corriam pra mim quando se assustavam, quando tinham medo. Era tão bom vê-los correrem para os meus braços, se aninharem no meu colo e ficarem felizes e tranquilos. Sentiam-se protegidos contra tudo e contra todos. Dependiam de mim e eram meus. Depois foram crescendo e já não dependiam tanto, já não corriam pra mim com tanta confiança, com tanta segurança e se alguma coisa os aborrecia ou se surgia um desentendimento entre eles, brigavam, exigiam, cobravam e queriam sempre mais de mim. E foram crescendo, já não me buscavam, já não me amavam, não tinham tempo pra me fazerem um carinho, só pra me cobrarem, eu via com horror que se tornavam egoístas, gananciosos e áridos. Brigavam sempre, tinham um ciúme doentio uns dos outros e só nos raros intervalos entre as brigas surgia uma conversa mais ou menos fraterna, E quantas vezes os mais compreensivos, os mais amorosos foram negligenciados porque amavam simplesmente, sem pedir nada em troca, sem impor condições.

                E aquelas crianças que nasceram da mesma mãe, que brincaram juntas, que brigavam mas permaneciam juntas, unidas; aquelas crianças que choraram juntas, riram juntas, inventaram brincadeiras juntas, que pareciam pequenas peças de um quebra cabeça maravilhoso chamado família se desintegravam, já não se encaixavam mais. Viviam na mesma casa por costume, por hábito, mas não havia amizade, amor, unindo aquelas criaturas. E então casaram e assim desmoronou de vez. Já não me amavam, já me odiavam. E aquelas crianças que foram minhas, que se alimentaram todas de mim, que me sugaram com tanta avidez, essas crianças que brincaram e riram juntas se transformaram em inimigas. Como pode meu Deus? Será que gerei monstros em vez de gente?!! Será?! E como gostam de falar mal uns dos outros; basta verem uma pessoa conhecida ou não pra desfiarem um rosário de acusações contra seus irmãos. Por que são assim? Por quê? Será que todas as famílias são assim? Quase todas?  Muitas? Poucas? Pouquíssimas? Ou será que a minha é uma exceção? Não sei. Mas é triste.

                  Hoje sou considerada um trambolho que só atrapalha.

             Meus filhos, netos e bisnetos não me amam. Alguns me odeiam, não vêem a hora de se verem livres de mim, outros me dão um pouco de atenção por obrigação. A gente sente quando as atitudes são forçadas.

               Parece impossível que criaturas que sugaram o mesmo sangue, a mesma carne, músculos, nervos, a mesma seiva e o mesmo amor possam se odiarem tanto, se detestarem tanto, se desejarem tanto mal. Parece uma maldição.

               Mas, apesar de tudo, há algo bom. Entre tantos filhos e filhas, netos e netas, bisnetos e bisnetas que me detestam, odeiam ou ignoram, há alguns, pouquíssimos é verdade, mas há, que me amam de verdade sem nada pedirem, exigirem ou cobrarem, sem imporem condições.

                   Me amam tanto que sinto quase obrigação de ser forte pra fazê-los felizes. É por eles que sinto que minha vida tem sentido, que sinto que não fracassei. Alguma coisa boa eu fiz.

                         Batem à porta.

                         - Entra.

                        - Oi Vó. Eu quero que a senhora me fale do seu tempo de moça. Pode Vó?

                      -  Claro querida, eu adoro conversar contigo.

                      A menina puxa a cadeira pra perto da vó, deita a cabeça em seu colo e se prepara para ouvir as histórias antigas que a Vó conta, enquanto acaricia sua cabeça.

quarta-feira, 25 de maio de 2022

 

Emoções

 

 

 

                   De repente o fim do jogo, o fim do sofrimento. O sufoco acabou, o grito preso na garganta explodiu, as lágrimas e o sorriso se misturam formando uma máscara  de felicidade e emoção, a tensão desmorona.

                   O coração disparou, a alma enlouqueceu e o corpo foi percorrido por ondas de calor, frio, suor e arrepios.

                   Uma loucura arrebatadora toma conta do corpo e da alma.

                  

 

 

 

 

                                     

                           

 

 

quarta-feira, 14 de agosto de 2019


Por que?


Por que é assim e não de outro jeito?
Por que sorri quando devia chorar?
Por que chorei quando devia sorrir?
Por que disse não quando devia dizer sim?
Por que disse sim quando devia dizer não?
Por que calei quando devia falar?
Por que falei quando devia calar?
Por que amei quando não devia amar?
Por que não amei quando devia amar?
Por quê? ...Tantos porquês! Nenhuma resposta.
Afinal, parece que minha história se resume em porquês. Por quê?
Por quê  parti quando devia ficar?
Por quê fiquei quando devia partir?
Por quê tantas perguntas e nenhuma resposta?
Por quê?

domingo, 24 de setembro de 2017

         Paixões...Emoções

                   Paixões, emoções, há várias e diversas. Mas estas das quais vou falar referem-se ao futebol e no meu caso específico o GRÊMIO. Não vou falar da minha paixão pelo GRÊMIO. Vou falar da paixão e das emoções que mexem com as pessoas que amam este esporte.
                     A paixão é algo arrebatador, passional, o torcedor em geral briga, xinga, vaia, ovaciona, endeusa, idolatra, dependendo de como seu time, seus jogadores se portam em campo. Mas há torcedores(e entre eles me incluo) que amam apaixonadamente e de maneira incondicional, que consideram xingar, vaiar ou  brigar com seu clube uma heresia, um crime, um pecado. É verdade que às vezes surge algum dirigente que comete tanta besteira, age de maneira tão irresponsável ou alguns jogadores tão mercenários, sem garra, sem vontade que aí sim, dá uma raiva danada. Deles, jamais do Clube.
                        E cada partida é uma história diferente, algumas são verdadeiros banhos de bola, o time arrasa, tudo sai certinho, tudo funciona maravilhosamente bem e os gols acontecem ao natural, nosso rosto é um sorriso só, os olhos estrelas brilhando, a alma se expande e nos sentimos no Paraíso.
                          A derrota é uma coisa pavorosa, uma dor lancinante, uma tristeza que toma conta de todo nosso ser, de cada célula, de cada partícula , a alma fica pequenininha encolhidinha, o coração apertadinho, um nó na garganta, os olhos doendo e um desânimo de tudo; o desespero e o estado hipnótico e de pesadelo permanece algum tempo, até que se aproxima outra partida e recomeçamos tudo, como se fosse a primeira vez que fôssemos ver nosso  Clube jogar, e na verdade, não deixa de ser, porque a história de um jogo não se repete nunca.
                            Mas aquele jogo decisivo, quando as duas equipes são fortes, se equivalem(claro, os dois times são ótimos, mas o nosso é o melhor). Este jogo nos coloca à prova, testa nossos nervos, nosso equilíbrio, a tensão chega ao ponto máximo. Se  estamos perdendo há o desejo desesperado de conseguirmos virar e sairmos vitoriosos. Se  estamos vencendo é aquela tortura de controlar o tempo, ficar concentrada em cada lance, torcendo, secando, vibrando, levando susto.
                                Ai, meu Deus, por favor não deixa  ele chegar perto da área, para essa jogada aí. Chega junto, divide,  desarma,  faz logo esse lançamento, não erra o passe, passa logo essa bola, segura essa bola, chuta logo, daí mesmo, de qualquer lugar, mas chuta por favor.
                                      Os minutos passando, o goleiro fazendo milagres, defesas espetaculares e o nosso coração acelerado, os músculos retesados parecendo que vão  estourar, o rosto é uma máscara pesada, tensa e densa, a adrenalina anda a mil, o suor escorre, sentimos frio, sentimos calor, sentimos arrepios pelo corpo, os minutos são intermináveis. E esse juiz que não apita nunca o final desse jogo. Temos a impressão que nossas resistências chegaram ao fim, que mais um minuto  e vamos desmoronar.
                                        De repente o fim do jogo, a máscara se desfaz, as tensões aliviam, a alma e o coração parecem  criar  asas, ficam leves, voam; nosso corpo treme, lágrimas e risos se misturam, o grito trancado na garganta explode, a alegria é imensa, o Hino, a Bandeira, os risos, abraços, lágrimas, a loucura da comemoração aumenta a emoção e nos entregamos completamente, descontroladamente a esta felicidade. Estamos cansados, esgotados, desgastados e felizes, imensamente felizes. Foi difícil, foi sofrido, talvez por isso a vitória tenha sido mais gostosa, mais compensadora, Divina e total.
                  
                  


domingo, 18 de outubro de 2015

                CARNAVAL

                  De repente se encontra perdido naquele turbilhão(que  contradição! Se encontra perdido). Detesta Carnaval, mas os amigos insistiram tanto que resolveu acompanhá-los.
                  Há muito tempo chegou à conclusão que em bailes de carnaval sempre se está só, mesmo com toda aquela gente em volta.
                  - Mais uma cervejinha, Pablo?
                  - Sim. Obrigado.
                  Fica olhando. Toda aquela gente está como que desvairada, alucinada.  Riem, falam, mas muito provavelmente não sabem porque riem e o que falam.
                   Seus amigos estão animados, querem arrastá-lo para o meio do salão.
                               -Vamos lá Pablo. Vais ficar aí parado a noite toda?
                               - Não se preocupem comigo. Divirtam-se.
                               Fica sentado à mesa, tomando cerveja.
                               Um rapaz corta o pé num pedaço e garrafa. Sai à custo daquele labirinto, o pé sangrando. Uma menina passa mal, tenta sair, não consegue; tonta, vai cair quando alguém a ampara e a ajuda sair do salão.
                               No início ainda estão um pouco “acanhados”, “comportados”. Depois a música, o álcool e outras coisas mais, o cheiro quente e ativo que se desprende dos corpos suados vai excitando as pessoas, elas vão se soltando, começam a dizer e fazer coisas que normalmente não diriam nem fariam.
                               Em pouco tempo os instintos se libertam, o salão entra em ebulição e ferve...ferve...
                               Pablo pensa:
                               Tenho a impressão que qualquer coisa pode acontecer aqui que ninguém vai ligar. Acho que serão capazes  de rirem desbragadamente de uma tragédia e chorarem desesperados ao verem algo engraçado.
                               Alguém puxa seu braço.
                               - Vem dançar, vem, insiste a voz melosa e sensual.
                               Olha apavorado. Não sabe se é  mulher ou homem  quem lhe fala assim. Inventa uma desculpa. Não está se sentindo bem. Não pode dançar agora, mais tarde, quem sabe...se melhorar.
                               Sua admiradora(ou admirador) desiste. Respira aliviado.
                               - Se houvesse um assassinato ou alguém fosse torturado, talvez ninguém notasse ou então achariam  tudo muito natural.
                               Pablo olha, observa, vê pessoas cheirando, injetando drogas, casais(ou nem tão “casais” assim),  fazendo amor, amor não, sexo.
                               Começa ficar cansado daquilo tudo.
                               Parece que ao penetrarem no recinto do clube toda essa gente deixou lá do outro lado da porta, a alma e os sentimentos. Só entraram o corpo e os instintos.
                               Seus amigos sumiram, foram tragados por esta loucura desenfreada.
                               Precisa sair, precisa de ar, de espaço, de liberdade. Precisa respirar.
                               Olha aquela multidão em transe. Vai ser uma aventura esta “viagem” até lá fora, pensa. Tem um pouco de medo. Esta gente está enlouquecida. Uma população enlouquecida é uma coisa terrível. Incontrolável. Levanta disposto a enfrentar aquela floresta humana, precisa sair imediatamente, nem que seja preciso empurrar, levar alguém por diante. Que posso fazer? Pensa: “Estou numa selva...humana...mas selva”.
                               À sua frente, como se fossem closes, aparecem caretas, caras mascaradas, grotescas. Quando menos espera, alguém pespega um beijo em seu rosto, sua boca. Não pode evitar uma careta de nojo(será homem ou mulher? Nada contra, mas não é minha área). É abraçado, apertado. Mãos passeiam pelo seu rosto, por sua cabeça, puxam seu cabelo.
                               Pessoas se escondem por trás de máscaras pra fazerem coisas que com a cara descoberta não teriam coragem de fazer.
                               - Decididamente carnaval é pra quem está disposto a tudo.
                               Dá uma última olhada para o salão. O ritmo frenético acelera cada vez mais. E como ficam ridículos pulando feito macacos loucos.
                               De repente é arrastado por uma onda humana, luta contra ela, consegue se livrar e continua sua “viagem”.
                               Depois que o transe passar, que a realidade se impor implacável, ficará a ressaca, a sensação de vazio e angústia ao não lembrarem o que fizeram e disseram, ou então, ao lembrarem vagamente, numa mistura terrível, fatos, cenas e frases que parecem ter que pertencer a outra pessoa, mas, ao mesmo tempo, sabem que não pertencem a outra pessoa e sim a si mesmos.
                               É horrível esse esquecimento, mas não será melhor não lembrar nada mesmo? Afinal, já passou e outros carnavais virão.
                               Pablo finalmente consegue ganhar a rua, sente-se aliviado, mas ainda aqui, espalhados pelo jardim, pelos gramados há gente fazendo de tudo: vomitando, discutindo, amando(amando?!).
                               Um bando de jovens embriagados tentam jogar alguém na piscina.
                               Há pessoas estiradas no chão, dormindo? Desmaiadas? Mortas? Não sabe. Vai andando.
                               Formas humanas rolam na grama entre gemidos e suspiros. Mais adiante num banco outro casal está em grande atividade. Noutro banco, outro casal. Segue em frente. Ouve um diálogo(diálogo?) que lhe chama atenção.
                               -Ai cara, que loucura!...Ai...Que ignorância, cara!...
                               -Ummm...Gostosa!
                               -Ui, cara...Risos...Que ignorância! Puxa, cara, que legal!...
                               -Assim...Tá bom...Aaahh...
                               Que ignorância, cara!...Aaaiii...Uhhiii...Como é o teu nome cara?
                               -Deixa prá lá...Ah...Vem...E o teu?
                               -Pra quê saber?...Ai...Vem...Esquece...Que loucura, cara!...
                               -Vem cá...Assim...Que bom!...
                               -Ai, cara, que ignorância!...Gostoso...Assim...Aii...Ui..
                               Pablo continua andando, pensando:
                               -Por que será que essa menina repete de instante a instante “que ignorância, cara!” Não consigo atinar  com o significado dessa expressão. Parece loucura. A que será que ela se refere? Gostaria de saber.
                               Ainda bem que nunca tive nos braços uma mulher que ficasse repetindo: “que ignorância!” “que ignorância!” Seria insuportável.

                               Pablo atravessa o pátio, sai,  sente-se livre, as ruas estão praticamente desertas. É tão gostoso andar assim, tendo a lua e as estrelas como companheiras. Chega em casa, toma um banho, deita e adormece. Mas antes ouve o seu querido Beethoven pra desintoxicar a alma.

sábado, 27 de dezembro de 2014






 Tentação


         Acorda. Está aturdido. Olha as paredes brancas e nuas. Tudo muito limpo e confortável, mas frio e impessoal...E esta cama? Branca também, tudo branco;  até o pensamento. Branco. Branco. Branco.
           Entra uma mulher de branco e lhe aplica uma injeção. De repente lembra tudo.
         Ele parado à beira do mar, dizendo aos amigos: não tenho medo da água em si, mas do fascínio que ela exerce sobre mim. Depois, o mergulho nas ondas, aquela água estava tão deliciosa que era impossível resistí-la e ele cada vez mais mergulhava naquela doce, gostosa e louca volúpia. A água chamava-o, atraía-o e ele se entregava sem resistências àquela tentação. O cuidado e a prudência que sempre procurava ter quando enfrentava essa luta o abandonaram e se atirava como louco nos braços daquela água que o arrastava para um mundo encantado onde havia sereias, tesouros, cidades submersas. A esta altura já estava completamente entregue, dominado pelo encanto envolvente do mar; bravio e calmo, furioso e aliciante. Só pensava na maravilhosa aventura que iria viver nas profundezas aquáticas onde seria rei, encontraria uma linda princesa(que tinha a cara de sua namorada) esperando-o para viverem um grande e eterno amor. Haveria castelos e jardins, a flora e a fauna mais exuberante do mundo. Haveria sonho, magia e encantamento. Enquanto pensava, avançava cada vez mais, já não tinha noção de onde estava.
              Começou a sentir cãibras, tentou libertar-se, mas já não era possível, não tinha forças, as ondas pareciam engolí-lo, a respiração estava ficando difícil, entrou em desespero, sentiu-se perdido.
         Quanto mais tentava resistir, mais era tragado, arrastado por aquela fúria voluptuosa. O peito parecia que ia estourar, sua cabeça, seus pensamentos, tudo rodava prestes a explodir. Uma dor dilacerante penetrava seu corpo, sua alma. Sentiu-se enlouquecer, morrer. Pensou nos pais, na namorada, nos amigos, em seus sonhos. Começou delirar. Um desespero tomou conta dele, a asfixia tirava-lhe o sopro de vida que ainda o animava, sentiu que ia desfalecer, mas ainda teve tempo de pensar em Deus. Depois tudo se apagou.
           A enfermeira torna entrar no quarto. Fala com ela, pergunta, quer saber detalhes, como chegou, quem o trouxe, quem o salvou. Ela responde  todas as perguntas, satisfazendo plenamente sua curiosidade.
                Agora acorda ali, num hospital. Sobreviveu à luta. Sente-se feliz apesar da dor que sente por dentro e por fora; parece que um trator passou por cima dele. Pelo menos valeu a lição. Na próxima vez, pensa, terei mais cuidado. Não me deixarei envolver e arrastar desse jeito. Saberei resistir à tentação de me deixar levar ao sabor das ondas. Afinal, desta vez os salva-vidas estavam  atentos e os amigos por perto. Graças a Deus.
                   A enfermeira entra e diz que seus pais, amigos e a namorada querem vê-lo.
              A porta se abre e ele os vê entrarem silenciosos, abatidos, cansados mas felizes e aliviados.
                 Sorri pra eles...E chora. Chora de emoção por continuar vivo.







segunda-feira, 31 de março de 2014

Rotina



                              

         Sentada à mesa do café Fernanda pensa em sua vida, em sua medíocre vida, naquele corre-corre infernal no escritório, naqueles números dando nó em sua cabeça. Toma um gole de café, olha o relógio: 7 horas, daqui a pouco estará sentada a sua mesa, soterrada em um monte de papéis, ouvindo reclamações, cantadas, indelicadezas, mas terá que continuar a ser gentil, a sorrir, a dizer: “as suas ordens”, “pois não”, “apareça sempre”, enquanto uma tempestade agita sua alma, mas isso não importa, o que importa é o sorriso de coquetel pendurado no rosto, torna a olhar o relógio: 7h10min. Os dias se arrastam, se emendam, não sabe se ontem é hoje ou se hoje é amanhã, parece-lhe que nunca sai dali, é uma rotina interminável e ao fim de cada dia dói-lhe o corpo, dói-lhe a alma, faz um balanço da sua vida e não encontra nada que lhe tenha dado prazer; 7h15min, é preciso sair, se chegar atrasada é reclamação que não acaba mais. No apartamento vizinho, as crianças preparam-se para a escola, pensa em como era bom o tempo que era criança e tinha mil sonhos a realizar, agora está condenada a passar os dias trancafiada entre quatro paredes e a única coisa interessante são os tipos que desfilam a sua frente e os próprios colegas que mais parecem robôs andando de lá pra cá e de cá pra lá dizendo “sim, senhor”, “pois não, senhor”, às ordens, senhor”, ou senhora, se for o caso, é de enlouquecer; 7h20min; enquanto trabalha, observa; já fez um perfil de todas as pessoas que trabalham com ela; a Ana vive inventando piadas pra ela mesma rir, já que ninguém mais acha graça; a Tânia é a mulher fatal do escritório, com roupas extravagantes, cheia de poses sensuais que copia das artistas do cinema e da televisão, vive  se insinuando para os clientes e para os colegas e é famosa pelos seus casos de amor. E a Fernanda? Bem, a Fernanda tenta achar um jeito de se libertar dessa prisão,  mas parece que não está sendo muito capaz pra essa tarefa e além do mais tem que ficar se equilibrando entre um assédio sexual ou psicológico. Que tortura! O Paulo é o galã, dizendo galanteios, contando vantagens, acha que todas as mulheres vivem correndo atrás dele e que é impossível resisti-lo; o André, esse tem mania de geólogo, tudo que encontra na rua junta, amostras de terra, pedras, coisas desse tipo; o chefe, o senhor Leôncio, esse é ridículo e se julga muito interessante, muito culto e ninguém o suporta quando começa dar conselhos e contar histórias da sua vida. 7h30min, é preciso ir, mas é tão difícil enfrentar o dia-a-dia, é preciso fazer alguma coisa senão enlouquece, não aguenta; e aquele cliente, o senhor Joaquim Pacheco, ah! Ele é tão engraçado com aquela barriga enorme, querendo ser moderno para agradar as moças, como ele diz e fala tanto , conta umas coisas bobas e jura que disse algo muito interessante; o senhor Felipe, esse parece que ainda não percebeu que o tempo dos coronéis já passou, chega falando grosso como se estivesse mandando e olha as mulheres como se fossem objetos disponíveis e aquele bigode enorme que carrega o torna pior ainda; o senhor Rodolfo adora se lamentar, nada dá certo, a plantação não deu, o governo tá acabando com o agricultor, o tempo não ajuda, se está chovendo acha que é preciso sol, se está fazendo sol, acha que tinha que estar chovendo; o senhor Ari acha que tudo que é dele tem mais valor, o seu campo é o melhor, o seu carro é o mais econômico, o mais potente, o mais bonito, não importa que os outros sejam da mesma marca,  mesmo desing, o dele é  único, a sua plantação é a melhor que existe, o seu rebanho é uma seleção. Toma o último gole do café, olha o relógio; 7h40min, pega a bolsa, se despede dos pais e dos irmãos e vai à luta.